segunda-feira, outubro 31, 2005

O Quadrado

Não sei ao certo em que guerra estou. Todos os dias a esta hora, seis da tarde, começo a ser cercado por tropas que não vejo. Sinto-as perto de mim, sei que estão à minha volta, mas não vejo ninguém. Só os tiros, as rajadas, os rockets. Por vezes pegam no megafone e dão-me ordem de rendição:
- Estás sozinho, dizem. És um soldado sozinho numa guerra que há muito está perdida.
O problema é que não sei sequer que guerra é. Não sei quem me vestiu esta farda, nem quem me mandou para aqui e me pôs uma arma nas mãos. Munições não me faltam, nem rações de combate, nem água. Todos os dias sou reabastecido. Mas também não sei por quem. Não sei tão pouco quem são os meus, nem por que país ou causa estou a combater, se é que combato pelo que quer que seja. Defendo este reduto. É o meu quadrado. Talvez não tenha sentido estar aqui a defendê-lo, mas se o perdesse eu próprio me perderia. O único sentido, que talvez não tenha grande sentido, é defender este quadrado. Até à última gota de sangue, como há muito, na recruta, me ensinaram. Por isso não me rendo. Por mais que me intimem e me intimidem continuarei a resistir. Não propriamente por razões militares ou morais. Digamos que por razões estéticas. Um homem não se rende. Talvez seja por isso que estou aqui, não sei ao certo onde nem desde quando, talvez desde sempre, no meio de um quadrado, cercado e sozinho, mas não vencido.
Algures alguém me reabastece. Algures sabe que não me rendo.
Todos os dias, pelas seis da tarde, aperta-se o cerco. Todos os dias, à mesma hora, me coloco em posição. É estranho que não me acertem, verdade seja que também não sei se alguma vez atingi o inimigo, se assim lhe posso chamar. Chego a perguntar-me se não é sonho, se tudo não é apenas um pesadelo e se de repente não vou acordar.
Seja como for, a guerra continua. Em sonhos ou não, continua. São quase seis da tarde e sinto que eles se aproximam. Todos os dias é assim, todos os dias defendo o meu quadrado.
- És um homem sozinho e a tua guerra está perdida, gritam eles.
Sei muito bem que estou sozinho. Mas enquanto me bater a guerra não está perdida, ainda que se me perguntassem que guerra é eu não soubesse ao certo responder. Diria talvez que é a guerra de um homem no meio do seu quadrado. Um homem que se bate, talvez em sonho, porque tudo se calhar é sonho. Sonho de um sonho, lembro-me de ter lido algures. Que importa? Sonho ou não, eles aí estão, tenho de defender o meu quadrado, não há outro sentido senão este, lutar até ao fim, um homem não se rende, não seria bonito, seria, aliás, se me permitem, uma falta de educação, uma grande falta de educação.


Manuel Alegre
(Este texto faz parte do novo livro do contos editado em Setembro de 2005)

quinta-feira, outubro 27, 2005

Confúcio

Uma vez perguntaram a Confúcio:

- O que o surpreende mais na humanidade?

Confúcio respondeu:

- Os homens perdem a saúde para juntar dinheiro e depois perdem o dinheiro para a recuperar. Por pensarem ansiosamente no futuro, esquecem o presente, de tal forma que acabam por nem viver no presente nem no futuro. Vivem como se nunca fossem morrer e morrem como se não tivessem vivido...


(recebi isto por mail, desconheço a autoria.)

MC

quarta-feira, outubro 26, 2005

Bomba


Vou atirar uma bomba ao destino.


Álvaro de Campos (FP)

sábado, outubro 15, 2005

Ó sol

Onde andas tu, ó sol?
Onde te escondeste?
Desapareceste?

Ahhhhhhh
Já chegaste!
Ohhhhhhh
Não eras tu!
Ohhhhhhh
Afinal não voltaste!
Não és tu no seu todo,
É só um raio teu!

És um covarde, ó sol
És um mentiroso, ó sol
És um assassino, ó sol

Iluminas-me fortemente
Dias, semanas, meses
E depois, estranhamente
Foges, desapareces...
(Será que enlouqueces?)

Leva esse teu raio
Não preciso dele
Não confio nele
Nem em ti!
Quero ficar aqui
Só com a lua
Essa, conheço-a bem
Não mente,
Não engana
Vai e volta
Em todo o seu esplendor
Os seus raios
Os seus reflexos
São melhores que tu
Ó sol
Seu bandido
Seu foragido
Vai iluminar quem não merece, ó sol
Vai
Vai aquecer quem não precisa de calor, ó sol
Vai
E como quase ninguém te conhece
Já sabes:
Quando voltares,
Todos adorarão a tua vinda
Flores irão abrir-se p’ra te adorar
Pássaros irão cantar p’ra te alegrar
Eu ficarei aqui,
Só, lúcido, a pensar
E a escrever sobre ti.

MC
(num dia muito cinzento)

quinta-feira, outubro 13, 2005

A impossível partida

Como poder-te penetrar, ó noite erma, se os meus olhos cegaram nas luzes da cidade

E se o sangue que corre no meu corpo ficou branco ao contacto da carne indesejada?…

Como poder viver misteriosamente os teus recônditos sentidos

Se os meus sentidos foram murchando como vão murchando as rosas colhidas

E se a minha inquietação iria temer a tua eloquência silenciosa?…

Eu sonhei!... Sonhei cidades desaparecidas nos desertos pálidos

Sonhei civilizações mortas na contemplação imutável

Os rios mortos... as sombras mortas... as vozes mortas...

…o homem parado, envolto em branco sobre a areia branca e a quietude na face...

Como poder rasgar, noite, o véu constelado do teu mistério

Se a minha tez é branca e se no meu coração não mais existem os nervos calmos

Que sustentavam os braços dos Incas horas inteiras no êxtase da tua visão?...

Eu sonhei!... Sonhei mundos passando como pássaros

Luzes voando ao vento como folhas

Nuvens como vagas afogando luas adolescentes...

Sons… o último suspiro dos condenados vagando em busca de vida...

O frémito lúgubre dos corpos penados girando no espaço...

Imagens... a cor verde dos perfumes se desmanchando na essência das coisas...

As virgens das auroras dançando suspensas nas gazes da bruma

Soprando de manso na boca vermelha dos astros...

Como poder abrir no teu seio, oh noite erma, o pórtico sagrado do Grande Templo

Se eu estou preso ao passado como a criança ao colo materno

E se é preciso adormecer na lembrança boa antes que as mãos desconhecidas me arrebatem?...



Vinicius de Moraes

terça-feira, outubro 04, 2005

Labirintos

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Quando somos crianças. Quando andamos na escola primária. Quando queremos saber todos os porquês. Quando brincámos com carrinhos e bonecas. Quando achamos que o estado adulto é uma coisa que está muito longe. Brincámos aos labirintos. Lembro-me de na escola primária alguns manuais terem labirintos didácticos. Ensinam-nos a gostar de labirintos. E conseguem. A maior parte das crianças gostam de labirintos. É um desafio encontrar o caminho correcto. O caminho certo. Depois de muito pensar sobre o assunto, concluí que não acho bem. Sou contra. Para quê induzir as crianças que há um caminho certo? Para depois, quando deixarem de ser crianças concluírem, com desânimo e tristeza, que afinal não há um caminho correcto? Que os caminhos da vida cruzam-se, entrecruzam-se, voltam a cruzar-se e de novo a descruzar-se?
Penso que seria mais didáctico ensinar que no labirinto da vida devemos escolher caminhos tendo sempre consciência que todos eles são temporários e não levam a lado nenhum. Ou, por vezes, levam a outros caminhos. Também errados. Ou, por vezes certos. Temporariamente.

MC