quinta-feira, outubro 13, 2005

A impossível partida

Como poder-te penetrar, ó noite erma, se os meus olhos cegaram nas luzes da cidade

E se o sangue que corre no meu corpo ficou branco ao contacto da carne indesejada?…

Como poder viver misteriosamente os teus recônditos sentidos

Se os meus sentidos foram murchando como vão murchando as rosas colhidas

E se a minha inquietação iria temer a tua eloquência silenciosa?…

Eu sonhei!... Sonhei cidades desaparecidas nos desertos pálidos

Sonhei civilizações mortas na contemplação imutável

Os rios mortos... as sombras mortas... as vozes mortas...

…o homem parado, envolto em branco sobre a areia branca e a quietude na face...

Como poder rasgar, noite, o véu constelado do teu mistério

Se a minha tez é branca e se no meu coração não mais existem os nervos calmos

Que sustentavam os braços dos Incas horas inteiras no êxtase da tua visão?...

Eu sonhei!... Sonhei mundos passando como pássaros

Luzes voando ao vento como folhas

Nuvens como vagas afogando luas adolescentes...

Sons… o último suspiro dos condenados vagando em busca de vida...

O frémito lúgubre dos corpos penados girando no espaço...

Imagens... a cor verde dos perfumes se desmanchando na essência das coisas...

As virgens das auroras dançando suspensas nas gazes da bruma

Soprando de manso na boca vermelha dos astros...

Como poder abrir no teu seio, oh noite erma, o pórtico sagrado do Grande Templo

Se eu estou preso ao passado como a criança ao colo materno

E se é preciso adormecer na lembrança boa antes que as mãos desconhecidas me arrebatem?...



Vinicius de Moraes